Fonte: Sinto Muito, de Nuno Lobo Antunes

“Que vida merece ser vivida?”

 “(…) O nascimento de uma criança com defeito neurológico, tal como o anúncio de um cancro num filho, transporta a mulher para patamares inimagináveis de dor. Difícil o papel do médico: mensageiro da má notícia, oráculo da tragédia. Como poderá ser, em simultâneo, o suporte da esperança? Se esta reside na falibilidade do médico, como confiar naquele que se deseja errado? Quantas vezes fui acusado de brutalidade no anúncio da má nova, quando a violência está na própria notícia! A maturidade do médico atinge-se quando percebemos que a zanga, que parece dirigir-se contra nós, tem outro destinatário, de que somos, apenas, o embaixador. Deus, porventura. A mãe de uma criança com paralisia cerebral jurou que um colega, de irrepreensível gentileza, teria comparado o futuro do seu filho ao de uma couve! Curioso este fenómeno, que Freud conhecia bem, em que se projecta no outro, e nas suas palavras, as nossas próprias angústias e medos. A esta fase de zanga segue-se, no processo do luto, uma espécie de negócio ou desafio à natureza. Este tem as raízes não muito longe do húmos religioso, ou seja, no milagre do amor. Assim como Cristo salvou o Homem com o seu sacrifício, também a mãe, com idêntica abnegação e devoção, será capaz de modificar o destino do seu filho, através de forças que a ciência desconhece ou não leva em conta. Nesse momento, mãe e médico encontram-se em campos opostos, quase adversários, já que a frieza da análise técnica é inimiga do sonho. Período difícil de navegar, porque por ele esperam os vendilhões da esperança, desejosos de (se) alimentarem do sentimento que, segundo dizem, é o último a morrer. Período também, muitas vezes, de rotura conjugal. A criança só se salvará se por ela for feito «tudo». Naturalmente que «tudo» inclui um sem número de terapias, desde as aceitáveis às irrisórias, e viagens a países subdesenvolvidos, onde a falta de avaliação científica rigorosa permite especulações que os media portugueses, de imediato, ampliam. Alguém terá esta disponibilidade total, e não é, o mais das vezes, o pai. A relação entre a mãe e o seu filho é de tal forma simbiótica que o homem se sente excluído. Parte vítima, metade carrasco. É certo que alguém tem de suportar os encargos financeiros e que a competição no mundo do trabalho é impiedosa, mas também é verdade que ao homem é mais dolorosa, em regra, a «ferida narcísica», criada por um filho imperfeito. A relação do casal torna-se frágil, de extrema vulnerabilidade. Uma palavra mal escolhida, a investigação de possíveis explicações no «teu lado» da família, a insinuação, ainda que ao de leve, de um menor cuidado na gravidez, aumentam a culpa já de si tão difícil de gerir. A mulher sente-se então abandonada pelo seu marido que, ausente no trabalho, não a acompanha às consultas ou tratamentos. Vê nesse comportamento não só um menor amor pela criança como também uma acusação implícita à sua própria imperfeição, ou não tivesse sido ela incapaz de gerar um filho sem mácula. É inútil o argumento das necessidades profissionais para garantir a subsistência da família. A ideia de abandono gera medo e zanga, perturba a relação afectiva, a vida amorosa. A resposta do homem consiste num afastamento cada vez maior, criador de um círculo vicioso, que termina, tantas vezes, em divórcio. Nesta altura o médico é idealizado. É ele que escuta, tem disponibilidade e diminui a dor. Transforma-se no «pai» ideal, e como tal, no «marido» perfeito. Novamente é necessária maturidade profissional para compreender esta fantasia, e perceber as suas origens e consequências. Nunca fui tão competente como nas vezes em que, durante este processo, senti que ajudei casais a não perderem o seu rumo, arte de navegar que não se ensina na Faculdade de Medicina.

     O nascimento de uma criança doente é a morte do filho idealizado. Esse luto é inevitável e até saudável, terminando na aceitação da realidade e em atitudes sensatas e realistas. O milagre do amor permanece sempre, tão mais notável quanto uma criança, mesmo «deficiente», desperta sempre uma ternura fácil. Mas não são, em geral, bonitas, sobretudo quando crescem e atingem a adolescência e a idade adulta. A diferença do «normal» é cada vez mais evidente, porventura chocante. Os olhares na rua, de curiosidade ou de sentimento ainda menores, são sinais quotidianos de que aquela criança é notada pela diferença. São, então, jovens vulneráveis, de autonomia limitada, e é grande, cruel e complexa a Cidade. Numa vida de alta competição, quem se preocupa com o elo mais fraco? E depois chega a angústia maior: a certeza de que é finita esta passagem pela terra, e que a ordem natural das coisas leva a que, muitas vezes, se recolha primeiro o pastor que a ovelha. Quem cuidará então daquela criança que ainda antes de nascer foi tão desejada e amada, fruto de uma mulher nova bonita, que nada faria crer tivesse um filho menos que perfeito. Filho por quem se esgotaram as lágrimas, por quem a mãe envelheceu e descuidou a aparência porque nada era mais importante. Criança que deu também tantas alegrias quando conseguiu realizar, em tempos de descontos, aquilo que outras fazem com naturalidade e segurança em apenas alguns meses de vida: sentar-se, andar, algumas palavras. Mãe que envelheceu temendo que, com o crescimento, o seu filho se apercebesse, de forma cada vez mais consciente, da sua diferença e que, com isso, sofre. E ela, mãe, impotente para travar esse sofrimento. Falhanço miserável, para quem tinha uma ambição simples: ver o seu filho feliz.

                Como médico, já tenho netos, isto é, já consultei filhos de crianças que, em tempos, observei. Ao longo da minha vida, envelheci ao lado de famílias que em mim confiaram para as acompanhar nesta viagem especial. O André, o Ruca, a Sara, tantos outros, para quem o milagre do amor foi tão natural como a própria existência. Seria tolice imaginar que é bom ter um filho deficiente, mas que pense duas vezes quem julgue poder determinar, com saber e autoridade, que vida merece ser vivida.”